Testamento

Decido respirar profundamente: 17 mil litros de ar por dia e não é suficiente.

Na curva da estrada perco minha configuração. 

Onde eu estou, a essa altura? 

A terra está úmida e meus sapatos afundam.

Até as águas do rio escarnecem do meu infortúnio. 

Eu ali, faltando partes, os sentidos me escapando. 

Minha cabeça deitada sobre a grande rocha, os cabelos ventando e grudando no musgo verde, o olho escorrendo essa dor de não me saber mais. 

Na outra margem estão minhas pernas cansadas da caminhada, dobradas como que numa prece, os joelhos fincados na terra: eu peço perdão. 

Um braço perdido segue corredeira abaixo, acenando a vida que tivemos juntos. 

Não quero me despedir. 

Pisco e fica escuro por um instante. 

Sinto o medo percorrer meus restos e meu tronco débil segue rolando ladeira abaixo: ainda acha que é dono de si. 

O desfiladeiro arranha o braço que sobrou pregado. 

Os pelos cheiram a queimado de eriçarem-se contra as pedras. 

A única mão que ainda me pertence tenta se agarrar ao tempo, que insiste em terminar. 

No solavanco, meu coração é arrancado para fora. 

Sozinho, batendo teimoso, arrasta-se: quero amar mais um pouco a sensação estúpida e mentirosa de ser eterna para os meus. 

Por favor, não rasguem minhas fotos, não quebrem os pratos do casamento, não vendam os livros. A máquina de costura precisa ficar. 

Aqueles dias em que viajamos juntos também. Lembram de quando nadamos em águas quentes e calmas e as horas não passavam?

Deixem-me inteira na memória, ainda que oxidada. 

Guardem meu cheiro, meu riso, a lembrança de tocar minha pele. 

No testamento eu deixei as palavras que precisam voar e as que são só nossas [as miúdas ao pé do ouvido] estão dobradas e guardadas, junto com os paninhos bordados, na gaveta da mesinha de cabeceira.


Daniela Bonafé