Há uma linha tênue entre a sombra e a luz.
Uma réstia de sol que atravessa a veneziana é o suficiente para que eu veja, deitada, as minúsculas partículas de pó guerreando entre si. Se empurram e estapeiam, estrangulam umas às outras na tentativa de impor limites. Ontem eu matei um homem.
Não sei bem explicar o tamanho da dor. Ele me bateu três vezes contra a parede e minha cabeça começou a explodir. Puxou meu corpo pelo chão do quarto do seu apartamento e prendeu minhas mãos com o fio do carregador do celular.
Eu não preciso dizer o que ele botou para dentro umas dez vezes até eu ficar sem voz.
Em mim foi crescendo uma noite sem fim, do tamanho do vazio.
Quando ele me deu as costas para pegar o soco inglês, consegui suspender o vaso de copos de leite com as pontas dos dedos e o joguei para cima de sua cabeça.
Tão lindas flores, pensei assim que cheguei. Um homem romântico é sempre bom depois de um tempo sozinha. Não durou duas horas.
Ele tombou sobre a cama e as pétalas largas e brancas esmigalharam no chão. Eu preferia que não morressem e queria tê-las recolhido com o carinho que mereciam. Demoram a vingar e ficar resistentes.
Eu o chutei. Nunca pensei no meu pé fazendo esse movimento. É que sobreviver parecia uma palavra para ser usada em conversas relacionadas a boletos.
Com os dentes puxei os nós que atavam meus punhos e corpo-a-corpo eu lutei. Lutei pensando no que faltava, naquilo que fazia doer. Eu o enchi de marcas no meio da cara com os anéis da arma até que desacordasse.
Senti subir pela coluna um frio.
Quis o abraço da minha mãe e seu colo morno para descansar. Ela tinha um jardim tão lindo, onde brotavam todos os tipos de touceiras. Em agosto se anunciavam os botões de copos de leite e ela tratava de manter os cachorros bem longe do canteiro. Eu gostava de ver a chuva enchendo cada um deles e acompanhava, pela janela, o desaguar lento daqueles vasos naturais, tão brancos como as toalhas de mesa que ela engomava.
Recobrei a força, puxei-o até a banheira e liguei o chuveiro. Carreguei o corpo dele como eu carrego esse fardo de ser mulher. Vi sua massa mole afundando na água quente, primeiro vermelha e depois roxeando, até que não respirava mais.
Acompanhei sem remorso o claro-escuro que se instaurou em mim.
Na madrugada passei na floricultura. Era a única aberta tão tarde. Comprei todos os copos de leite que estavam disponíveis e enchi os bancos do carro com eles.
Pensei que não era bom fugir sem a companhia das flores.
Ainda não lavei as mãos. Um pouco de sangue, um pouco de seiva, um restinho de moscato. As marcas de quem colheu aquilo que não plantou. Ou será que ter nascido assim, com um copo de leite entre as pernas, já me determina uma sina sufocada no desabrochar?
Um pedaço da manhã entra pela fresta e antes que a terra e o peso de todos os dedos apontados recaiam sobre mim, sinto o toque aveludado das pétalas no rosto.
Texto disponível na Revista Vinca Literária: VINCA_LITERARIA_ED1.pdf - Google Drive