Árvore

Não cabia mais no seu corpo e nem dentro da sua cabeça. 

Transbordou. 

O contorno fugiu como uma corsa do tiro e os olhos se encheram de umidade. 

Não se virou para trás. 

Aquela velha se foi. 

Um livro morto, um vestido roto, um jeito novo de ser. 

A linha se desfez num emaranhado sem começo. 

Ela deu de ombros. 

Renascida feito um novelo de costurar memórias. 

Seus fios rastejaram um tanto até pousarem no rio. 

Perfuraram o chão do fundo, enlamearam-se até as fibras. 

Desejo do meio, do sem fim do centro, conforto para dormir e sonhar. 

Foi assim que, sem forma alguma, fincou raiz. 

No tempo do assoalho do rio, desatou os nós. 

E a vontade de delicadeza se fundiu à sua natureza de resistir.


Agora sente os dedos nascerem e aprofundarem-se na terra do mangue, finos caules de falanges.

E vai brotando, com sol e ventania, um desejo latente de engrandecer o tronco, de crescer contra a gravidade. 

Endurecer a casca e enrugar os poros para ser rija e forte no meio da correnteza. 

Escuta uma folha romper a pele. 

Ela ouve a seiva por dentro da entranha e sabe que vinga a força desse querer, a despeito da cheia e dos caranguejos que lhe sobem desde baixo. 

Impassível e sábia, se nutre de luz e do abrigo morno da terra encharcada. 

É irreversível. 

E de tanto que sobe e agiganta a copa e faz surgir galhos tortos e firmes, ela sente a certeza de que é, enfim, inteira.


Texto disponível em: ÁRVORE (artesmanuais.art.br)