Dona i Ocell

a partir da escultura de Joan Miró

Um dia acordei pássaro.

Já não sei bem precisar quando, porque depois foi um infinito de madrugadas acordando antes das quatro horas para gorjear, como se eu tivesse nascido insone desde sempre. 

Não sei o que há, parece um instinto: eis que me pego de olhos bem abertos e com a goela seca, anunciando auroras a toda a voz e canto, em decibéis que jamais pude imaginar. E comigo se somam tantas outras, que vai ver sucederam assim também, de uma hora para outra, pássaros.

Sinto minha plumagem fina como aquele vestido de minha festa de quinze anos, lembro-me bem da saia leve de organza que mal tocava o chão. Minha pele viçosa de mulher madura deu lugar a essas penas vermelhas, de um sangue rubro quase inalcançável de tão bonito. 

Palpita em disparada meu coração frenético batendo a cada segundo. Se ainda fosse eu aquela mulher, que até tomava remédios para pressão e arritmia, estaria agora infartando. 

De todo modo, se fosse só isso, estaria bom. Não é tão difícil se acostumar ao vôo livre, ainda que eu plane nesse céu poluído e cinza típico da cidade grande. Antes minha asma já me acometia e não me assustei com as centenas de fuligens entrando pelo meu bico. Mais do mesmo, mas sem as amarras e quem diria que um bico assim longo ficasse tão bonito em mim, de feições delicadas. 

Até hoje a tarde o que eu não gostava nessa nova vida era a comida. Antes fosse o tempo um amigo que me trouxesse alento, mas passam dias e passam meses: não há como eu lamber minhocas sem que sinta nojo e nem comer restos de comida sem que me embrulhe as vísceras.

A escassez de árvores frutíferas está acabando comigo e sou um pássaro fraco, quase ressequido por isso. Seletiva, a comida sempre foi a pedra no meu caminho e agora, parece que carrego essa pedra na minha asa, que pesa tanto e não bate tão rápido e uniforme. 

Pois bem, digo que ainda assim estava bom. Já mencionei que me contento com pouco? Nunca fui de exigências e firulas e nos finais de tarde, não me incomodo em repousar num tronco úmido, em dormir com o barulho dos carros ou das reclamações dos bêbados, ou em acordar no meio da noite com as sirenes de ambulâncias enlouquecidas. 

Ainda que eu não conte mais com calendários, que as horas corram sem que eu marque com ponteiros a passagem do tempo, presumo que seja outono e nessa tarde perdi as certezas.

Numa correnteza de vento sem precedentes, talvez pelas mudanças climáticas que vêm tombando até pessoas, fui levada me debatendo pelos ares, a voar contra um vidro grande de uma casa maior ainda. E estatelada no chão, quase morta, mas ainda piando, esse gato preto - tão magro quanto eu - chegou bem perto, roçou seu focinho em meu dorso e pela boca agarrou meu corpo. 

Agora, aguardo quieta e deitada sobre as folhas do jardim - entre a vida e a morte -  a piedade do bichano, que espero em Deus ser como eu, assim bicho meio gente. E quem sabe numa conversa, dessas que temos quando somos adultos, entenda que não precisa saciar sua fome matando uma semelhante. 

Posso dizer-lhe sem medo que somos, no fundo, iguais. Que pássaro e gato nasceram irmãos, que bichos e gentes foram sempre muito parecidos, bem antes dos repentinos acontecimentos de transformação, que estão a fazer da vida uma ficção sem fim. De insólitos já bastavam os contos, mas parece que a natureza tem desses causos sem explicação.

Vejo que ele se aproxima lentamente com seus pelos eriçados e penso, ainda lúcida, que se entre homens matamos por tão pouco - por uns míseros dinheiros, por um punhado de terras e fronteiras, por nomes e sobrenomes - não, definitivamente eu não deveria condenar a fome de um felino. Pode ser ele também como eu, seletivo, e não apreciar as frutas que tanto amo.

— Vai me comer?

Ele me cheira e não me responde. Sinto seu hálito quente entre os dentes afiados, bem perto da minha cabeça. Tenho medo. Ele abocanha meu corpo devagar e não me aperta. A destreza de um gato é algo para se conhecer de perto. Me carrega para a rua e árvore acima. Depois, me coloca dentro de um ninho velho e abandonado e sai sem me olhar nos olhos. Talvez esteja me guardando para o jantar, mas sinto que não duro até de tarde e penso que aqui posso morrer em paz, com alguma dignidade.

Espio pelas frestas das gramíneas secas e vejo um menino, que raspa as cascas da árvore e as come. Com um canivete, ele inscreve uma letra no tronco, que mal cabe no enlace dos seus braços. Sua barriga, apontando para um futuro sem nome, tem cara de solitária. A fome é tanta, que o vejo catando umas formigas para saciar as lombrigas.

Será que um pássaro virou menino? 

A natureza das perguntas é a mesma da natureza dos ventos: vêm e vão sem pedir permissão, carregando nossos pensamentos. A ventania me carrega para despencar no chão, com ninho e tudo. São os fios das folhas de palmeira que amortecem a queda. 

Eu bem que sabia que o meu fim estava próximo. Quando a morte vem chegando e eu sei porque acompanhei minha mãe na cama por meses, um saber toma conta da gente e tudo fica claro feito um nascer de manhã. Mamãe me disse que estava indo e foi mesmo, mas antes, disse ter visto uma senhora sentada à beira dos lençóis onde agonizava, dizendo que a levaria.

O menino me olha espantado. Pio, num suspiro de quase morte. Sinto minha escápula atravessar meus tecidos. Encolho meu corpo na palma de suas mãos. Espero seu carinho porque meninos sabem, desde sempre, que pássaros são como amigos. E ainda que eu perceba a visita fria do fim, tenho esperanças na criança que me toma inteira. Meninos são os que abrem as gaiolas nos filmes, não é mesmo?

Mas o menino me esmaga entre as mãos, me sufoca de falta de ar, me depena ainda viva e antes que eu vire a memória de um pássaro, antes que eu me torne a memória da memória da mulher que fui, eu tenho certeza de que o gato era, na verdade, um menino e de que esse menino é um homem, que extirpa meu coração e come minha carne crua e ensanguentada.


Daniela Bonafé