Tempos Estranhos

As crianças vidradas no colorido alucinante da máquina de reproduzir modelos. Os homens e mulheres pisando as cabeças dos outros e outras, num frenético tempo, sem tempo de ócio. As ruas tomadas por pessoas imóveis em seus veículos de fazer fumaça e barulho. Nas casas, muitas contas e grades, poucas conversas e risos. Estrangeiros em suas histórias.

Os amigos não tinham mais vontade. Os amantes não tinham mais desejo. Os jovens não tinham mais coragem. Os velhos não tinham mais paz. Estava tudo do avesso. Reclamavam do sol e da chuva, das árvores e dos passarinhos. Maldiziam o vento e os outros. Viviam julgando os cachorros, as moças e os mosquitos. Até os bebês viraram reféns de gosmas de comer em potes herméticos ou de acessórios estúpidos para incomodar a cabeça.

Ao acordar, os olhos bem arregalados mirando o branco neve do teto, pensava nessa estranheza toda que lhe esperava ao lado de fora. Às vezes, tinha até medo de abrir a janela do quarto e se deparar com um novo monobloco cinza, que poderia ter se erguido da noite para o dia, tapando sua vista estreita para um pouco de azul do céu.

Eram mesmo tempos estranhos e para sobreviver sem se perder, escrevia tudo quanto podia, de todo o jeito e forma, usando até despalavras. Porque enquanto juntava as letras, criando coisas de ler e sentir, toda essa estranheza de fora desaparecia por completo e a vida ganhava sentido..

É segunda-feira e então desperta pela manhã rodeada delas, palavras inteiras, grandes e gordas, tomando conta de todo o quarto, do chão ao teto. Redondo, ovo, combo, bola, coroa, lombo, onda, não consegue contar. São tantas palavras a ocupar todos os espaços do cômodo, que mal consegue se mover na cama. 

Surpresa, se pergunta como apareceram ali tão de repente, num passar de madrugada. É uma resposta retórica. Com tanto medo do mundo lá fora, estranho por natureza, veio criando seu mundo próprio.

Tenta tocá-las: em vão. Feitas de um material que se parece com o de um balão, amontoadas bem perto umas das outras, elas fogem ao calor de suas mãos e se multiplicam. E em minutos, dobradas em quantidade, elas sufocam. Não há espaço para respirar.

Procura a bombinha desesperadamente na mesa da cabeceira da cama e não a encontra. A falta de ar se intensifica enquanto a palavra bomba, grudada na janela, ri sem parar de sua cara arroxeada.


Texto disponível em : CONTOS DE SAMSARA 13 - NOITE