Menino

     Devia ter uns seis anos quando numa tarde quente de brincadeiras no quintal, entrou correndo no quarto dos pais para se esconder da irmã. Na ponta dos pés e segurando o riso, entrou na arca de madeira, se encolheu todo e quando o olho já estava se acostumando com o escurinho, a luz - que entrava pela janela do cômodo e atravessava os buraquinhos na arca feitos pelos cupins - iluminou um revólver que parecia brilhar dentro de uma caixa de sapatos aberta. Em pânico pelo que viu, tratou de sair de lá rapidinho e se escondeu atrás do cesto de palha. 

     Ficou por muitos dias pensando no motivo para sua família guardar em casa uma coisa tão horrorosa. Ali ninguém falava nesses assuntos, matar era pecado e a mãe logo dava um tapa na boca da criança que dissesse essa palavra assim à toa. Desde pequenos aprenderam que nem formiga se devia matar, quanto mais uma pessoa. Então, um revólver, que é mesmo para matar gente, não tinha sentido algum guardado no quarto. Mesmo assim, teve vergonha de perguntar. Achou que devia ser um segredo e ficou de boca fechada, mas cabeça de criança é de uma criatividade sem limites e logo passou a imaginar inúmeras histórias para que aquele revólver estivesse ali. 

     Imaginava tantas coisas que começou a ter medo das possibilidades e, depois de um tempo, acreditou que o pai não era boa gente. Ainda mais com aquele jeito de caminhão sem freio que ele tinha! Só podia ser o pai porque a mãe, a mãe era aquele coração de goiabada, que abraça até esmagar de falta de ar os filhos. O pai não. Aquele bigode, aquele jeito bravo de falar… era talvez um matador? De tanto matutar nisso, começou a acordar de supetão todas as noites, suando frio, achando que algo ruim ia acontecer em casa.

     Passou o tempo, o suficiente. Tomou cintadas e pontapés. Viu a mãe apanhar. Defendeu a irmã naquela madrugada de bebedeira. Teve até vontade de pegar a dita cuja naquela caixa, para de uma vez por todas acabar com a tormenta em que viviam, mas não teve coragem. A única coisa que teve foi uma certeza: o revólver era do pai maldito.

     Durante semanas a mãe tinha economizado dinheiro da venda de ovos dentro do pote de feijão. Com o dinheiro, pediu para a vizinha mais confiável comprar nove passagens para a cidade grande, dizendo que em breve ia visitar uns parentes. Deixou a casa impecável, para que ninguém falasse mal dela depois que tivesse ido embora. Era mulher digna e não queria uma só vizinha fofocando ou questionando a higiene e limpeza para cuidar do que sempre fora sua obrigação. Juntou suas coisas e dos oito filhos em sacolas, dando uma para cada um deles carregar.

     Ao segurar sua sacola nas mãos, sentiu que era levinha. Não tinha muitos pertences. A mãe já tinha dito que todos os brinquedos teriam que ficar, não tinha lugar no ônibus para eles. Suas poucas mudas de roupas não ocupavam espaço e ainda deu para colocar o único par de sapatos que tinha ganhado no bingo da igreja na semana anterior.

     Foi então que ele viu, antes de saírem, ela abrir a arca e colocar o revólver na bolsa.      Como podia ser a mãe, tão doce criatura, a dona daquela arma? A mãe percebeu que ele estava a espiar pela porta, mas nem por isso tratou de esconder a situação. Pelo contrário, disse-lhe em alto e bom tom: 

- Não precisa ficar me olhando desse jeito! Com a morte não se brinca e eu quero é estar bem protegida!

     Ela foi até a sala e deixou um ticket de passagem com cada um deles, para que guardassem nos bolsos. Disse ainda que se algo desse errado na rodoviária, a única coisa que deviam fazer era subir no ônibus amarelo o mais rápido possível, sem olhar para trás. Ele estava inseguro. Nunca tinham saído dali e todos diziam que a vida na cidade grande era perigosa, cheia de problemas e gente que olhava feio para quem chegava de fora. Ser o mais velho também era uma baita responsabilidade e as pernas começaram a tremer. No fundo, era só um menino.O semblante dela estava sério quando, apertando forte suas mãos finas contra seu peito cansado de amamentar crianças e de tomar murros dele e da vida, lhe disse:

- Presta atenção, meu filho, se qualquer coisa acontecer, você cuida bem da sua irmã, ela precisa embarcar junto com vocês. Não vai perder a menina, é muito pequena! Os outros até se viram, mas ela não, ouviu?

     Ele não conseguia ouvir nada além do zumbido na sua cabeça, que martelava a milhões de decibéis aquela vontade imensa de ter uma vida que não fosse assombrada pelo medo da morte, mas a mãe não deu tempo do medo assentar no coração de ninguém e emendou: 

- Agora vamos!

Texto disponível em: REVISTA CONTOS DE SAMSARA 6ª ED. MORTE