Anne Mon'Tinney

Ela guarda pensamentos. 

Ocupa um lugar entre e o entre não é bem um lugar. Um não lugar, entre dois, às vezes bem apertado, sem vez, de um jeito quase invisível, o lugar do meio. A irmã do meio. Pouco mimada, nem um ano. 

Teve esperança de ser a última, mas não. Como se já não bastasse não ser a única ou ao menos a mais velha, veio a outra, a última.

Habita o limbo. 

Todos dizem: que alegria, é bom ser carne de alguém.

Ela tem planos. O cofrinho já está cheio de moedas de troco da drogaria.

Pensa e todas as vezes que pensa, acredita.

Quer sumir com aquelas duas. É preciso.

Toda a noite a frustração de ter uma pilha de roupas em cima de sua cama, doadas pela mais velha. Essa que é sempre antes: no salto, na corrida, na leitura, nas notas. Ela é boa e parece até mais bonita. E a raspa do tacho, cheia de graça e fofura, dando risinhos sem dentes. Outra estúpida, isso sim.Um lugar só seu para ganhar o sim.

— Cuida da sua irmã!

Nem olham.

Todo dia vem a mãe, para fazê-la caber entre a cadeirinha de bebê da mais nova e as pernas espaçosas da mais velha. E o pai resmunga que queria um menino. Um que gritasse com ele nos jogos de futebol, que olhasse como ele para as meninas do clube, desejando ver por baixo das saias delas.

Ela até tentou antes ser um, foram tantas vezes, mas é delicada. Seus lábios carnudos e femininos despontam no meio da sua cara. Jamais bonita como a mais velha. Sem graça nenhuma, diferente da mais nova.

Não fede e nem cheira.

Pedras em seu caminho, como se fossem uma pedra para cada sapato. E ele ainda sobra, a pedra que se deve jogar no rio. 

— Vamos ao mercado, vamos, entrem no carro!

Da mãe guarda um pouquinho de amor. Dizem que mãe é para sempre, é aquela que ama sob qualquer hipótese e condição. A mãe diz, mas só às vezes, que a ama. Nisso deve haver alguma verdade. 

Maldito dia. Maldito.

— São suas filhas?

— Sim, Clara é minha mais velha. Tenho essa pacotinho de doce que é a Nana. E essa daí.

Essa daí, aponta. 

Essa daí. Retumba nos ouvidos. 

Essa daí. Ferve o estômago. 

Essa daí. A gota para transbordar o copo.

Mais uma pedra, a quarta, grudada na parte de trás da sua cabeça e por isso não dorme mais olhando para o teto.

Tempo com relógios e segundos contados. Um a um, igual às moedas.

Anda meio pêndula e com olheiras fundas. Os pés são duas casas de bolhas.

A pedra na mão entorta seus dedos para dentro, sempre de punho cerrado, segurando-a. Sem sono para sempre. O branco neve do estuque está na memória.

Já não parece mais tão delicada e um pouco bonita. Doente, passa tão mal que a mãe a leva ao hospital para uns exames.

Deve ser uma ponta de amor, pensa.

— É uma condição rara, senhora Mon’Tinney. Nunca vi na medicina algo parecido.

A mãe torce o nariz e o pai revira os olhos. Ambos perguntam, nervosos, sobre os custos do tratamento. Vendo a expressão deles ela vomita piche, grudento e fétido. 

— Que nojo! Pelo amor de Deus, o que você está fazendo?

A mãe torce o nariz e o pai revira os olhos, como o médico.

— Recepção? Por favor mande uma enfermeira aqui na sala 32.

A enfermeira entra, torce o nariz, mas limpa tudo. É preciso uma espátula para desgrudar do chão, parece chiclete pisado da escola.

— Tome aqui os saquinhos.

Um, dois, três dias. Ela conta muito bem.

Já não a suportam mais e pedem que ela coma sozinha no quarto e vá de bicicleta para as aulas. O carro tem bancos de couro legítimo.

Vomita piche a todo o momento. Mau hálito, como a boca podre de alguém morto. 

Quando a mais nova era bem nova mesmo, por inúmeras vezes tentou sufocá-la com o travesseiro no berço. Sempre ouvia alguém subindo as escadas para o quarto quando ela estava chegando no auge do prazer.

Na mais velha deu rasteiras. Passava a perna nela bem perto do hall superior. Numa das vezes a mais velha até rolou escada abaixo, mas o suficiente só para quebrar um braço. 

Saudade do chão na sola dos pés, o gelado do piso ou o quente do asfalto.

Observa cuidadosamente: a caixa de ferramentas que o pai guarda na garagem. O registro de gás. Agulhas e tesouras de costura que a mãe guarda embaixo da cama. Saltos dos tamancos. Facas de corte e de serra distribuídas nas gavetas da cozinha. Espetos de churrasco e o garfo da lareira. Garrafas de vinho na cristaleira da sala. Redes de proteção das janelas do andar superior. Lenços e echarpes dobrados e dispostos na gaveta do armário. Utensílios para cuidar do jardim. Taco de beisebol acomodado no cesto. Corda entre os brinquedos. Observa mais: onde o pai coloca a chave da gaveta da mesinha de cabeceira. Todas as possibilidades são reconfortantes. Uma lista com as incríveis maneiras de matá-los.

No espaço apertado de não existir, sem voz, ninguém imagina. Passa horas recheando seus cadernos de anotações, sem que notem.

Miolos.

Na noite passada até acordou suada com aquele pesadelo, a sombra que fazia sua cabeça aumentar e aumentar e aumentar, até que ela explodia de gosma preta, os olhos de todos embotados de grude, enquanto seu corpo perambulava sem cabeça pelas ruas, como um monstro dando risada no final da noite.

Manhã.

Tudo arrumado na mochila da escola. Os bolsos cheios de moedas de todos os anos.

— Hoje não vou de bicicleta!

Vomita e sai caminhando. Sente dor nos pés e esmurra o ar com o punho cerrado.

As bolhas estouram e sente certa alegria. A cabeça pesa. Os olhos estão sem brilho.

Entra na escola, finge que vai ficar na aula, mas antes do sinal bater ela já está virando a esquina.

Caminha até o parque, observando cada folha de árvore e senta-se num banco de frente para o lago. Gosta de silêncio.

Faz tempo que não se sente tão animada.

Tira os tênis e as meias para sentir a grama. Afunda a ponta dos dedos. Alivia.

Abre a mão com dificuldade e faz carinho em uma flor. Percebe uns furos nas palmas.

Pega uma pétala de gerânio, ainda úmida de orvalho, e passa na boca. Os lábios carnudos e femininos que despontam no meio da sua cara ficam vermelhos. Espera o suficiente.

Se apruma de novo.

Segue à uma grande loja de departamentos, onde antes sempre viu as vitrines com desejo.

Entra.

O corredor da moda feminina. O que escolher?

Tantas economias agora sim valem a pena. É preciso cuidado para selecionar o presente que quer para si. O único presente de verdade seu. Reconta o dinheiro.

Uma linda camisa branca, de tecido leve e solto, macia como a vida deveria ser, com lindos botões de madrepérola e um bolsinho perfeito na frente, na altura dos seios, onde pode caber um bilhetinho. Não há dúvidas. Sai do provador já vestida com ela e a velha camiseta usada na mochila. 

A atendente do caixa torce o nariz ao ter que contar tantas moedas.

A memória pode ser algo insuportável. 

Essa daí. Um pouquinho de piche vaza pelo cantinho dos lábios, mesmo fazendo esforço para segurar tudo dentro de si. Não pode manchar sua primeira roupa nova. As costas da mão servem para isso.

Na hora da saída da escola, o portão do pátio se abre e ela está lá, como se nada tivesse acontecido. Ele está descendo as escadas.

Ela corre desajeitada e pára em sua frente, impedindo que ele siga. É ainda mais bonito de perto. Seus cabelos pretos, de franja jogada no olho esquerdo, magro e alto feito um bambu, mas jamais desengonçado. 

— Ei, que foi? Você está me atrapalhando!

É verdade que nunca foram amigos, nunca tinham conversado.

Está determinada.

Os lábios vermelhos parecem doces e ele a olha profundamente.

É bom ser vista.

— Vem aqui!

Pega na mão do garoto e o puxa a passadas largas até a esquina, sem dizer uma palavra. No beco, atrás das lixeiras dos prédios, encosta o menino na parede sem que ele ofereça resistência. Mochilas no chão.

Como quem quer comer um pedaço de bolo depois de um dia inteiro de trabalho, beija a boca dele com vontade e avidez, mordiscando. Sua língua, a dele, sem quase respirar. Ele a beija de volta, é seu primeiro beijo, sua primeira garota. E mesmo que a boca tenha um gosto estranho e pegajoso, ele gosta e quer mais, beijos e tempo.

Um pouco bonita, um pouco delicada, uma camisa linda que ele acaricia e sente a maciez da vida.

Sem fôlego.

Ela abre o botão e o zíper de sua calça jeans, puxa a mão do garoto para dentro de sua calcinha e a empurra com força. Ele gosta. Desliza e gira seu longo dedo do meio pelos lábios carnudos e femininos dela, muitas vezes, com vontade e avidez, enquanto ela goza um líquido grudento, cheiroso, claro, branco, visco. Ela gosta. Ela gosta muito. Satisfeita, fecha o zíper e abotoa a calça. Coloca a mochila nas costas enquanto ele lambe os dedos. 

Ele espera vê-la de novo no dia seguinte na escola.

Ela se despede com os olhos.

Os lábios vivos. Os olhos mortos. E o piche.

Um, dois, três passos. Ela conta muito bem.

Está suada, mas ninguém em casa se importa com seus minutos de atraso ou seus tênis sujos de barro e folhas. Ninguém vê a camisa nova de botões de madrepérola que reluzem quando o sol atravessa a janela da cozinha. Uma camisa só sua. Ninguém se dá conta de que ela gozou na mão de um garoto e que ri por dentro. Como sempre, faz seu prato no fogão e sobe para o quarto.

Almoça e corta o bife bem picado como seus desejos de esquartejar essas pessoas.

Vomita outras duas vezes no banheiro e entope o vaso sanitário. Já está acostumada com o cheiro.

Arranca uma folha milimetrada do caderno de matemática, empunha uma caneta como se fosse a faca e escreve um bilhetinho. Dobra o papel com cuidado e o coloca dentro do bolso de sua camisa. Deita-se na cama e aguarda as longas horas que atravessam o dia. Tudo bem preparado como uma sobremesa de Natal.

Perto da hora do jantar, desce as escadas agarrada à uma esperança. Quer que as estúpidas pedras se movam uma única vez em sua direção.

Talvez possa jogar o bilhetinho fora e guardar o caderninho debaixo do colchão para nunca mais vê-lo. Talvez amanhã uma camisa amarela ou um gerânio rosa. Talvez até pudesse beijá-lo e senti-lo dentro de si mais uma vez atrás das lixeiras. 

Maldita noite.

Aquelas pessoas.

A mais velha não devolveu o olhar. Uma vontade imensa de quebrar aquelas pernas torneadas dela. Dor no pé esquerdo.

A mais nova, em uma careta, choraminga enquanto come e ganha carinho nos cabelos. Se o travesseiro não fosse de penas, teria funcionado. Dor no pé direito. 

Ele revira os olhos. Sempre quis um menino. 

A memória pode ser algo insuportável. 

Ela se lembra exatamente do dia em que ele olhou por baixo de sua saia enquanto descia as escadas de casa. Achou estranho seu pai fazer isso. A palma da mão começou a escorrer.

Jogar aquela pedra no lago do parque, para afundar bem fundo, para que nunca mais aquela pedra passasse as mãos em suas coxas quando estivesse no escorregador. 

A mãe torce o nariz. 

— Vai se lavar, nojenta! Você está suja!

E virando para o marido:

— Essa daí não se emenda. 

Essa daí. Retumba nos ouvidos. 

Essa daí. Ferve o estômago. 

Essa daí. Impossível segurar.

Vomita piche por toda a cozinha e deixa o porcelanato branco em petição de miséria. Em jatos, o piche alcança os eletrodomésticos, eletroportáteis, cortinas, azulejos. O cômodo está terrivelmente escuro e sombrio. Tudo o que foi lavado na faxina do dia anterior, todas as panelas areadas, todos os rejuntes, os lustres de vidro… tudo preto. O piche também neles, nas roupas, nos seus rostos, nas mãos e cabelos.  Como o sangue de alguém que está morrendo extirpado. Como o sangue de um rebento que está nascendo de uma barriga cortada às pressas. 

Gritos. 

Palavras de ódio.

— Sua vadia imunda, como é que eu pari essa aberração!

A camisa nova dela impecavelmente branca, de tecido leve e solto, macia como a vida deve ser, com lindos botões de madrepérola e um bolso bem passado na frente, na altura dos seios, perfeitamente intacta. Os lábios carnudos e femininos pintados de vermelho, intactos, sorriem.

Sem titubear, vai até o fogão e serve-se do jantar, como se nada tivesse acontecido. Duas garfadas na suculenta refeição. Pena ter que engolir tão rápido.

Vira-se de costas e decidida sobe as escadas, enquanto continuam gritando xingamentos.

Essa daí.

Um espaço só seu nos jornais, nas revistas, nos tablóides, no rádio, na televisão, na rotina daquela mísera cidade comum. Um lugar de destaque na boca de toda a gente e quem sabe, num conto de ficção, para se eternizar na história: uma história só sua. 

De todas as possibilidades, a mais rápida, a mais fácil, a mais prática, a mais indolor, a com menos chances de dar errado. Com a pequena chave que o pai guarda embaixo de uma imagem sagrada na cômoda do quarto, ela abre a gaveta da mesinha de cabeceira. 

Ali está ela: a pistola glock automática carregada, comprada por uns seiscentos dólares há alguns anos. Ela se lembra do dia em que ele a chamou para acompanhá-lo à loja, de como ele acariciou a pistola e fez gestos obscenos com ela. Para ela. Ela fingiu não se importar porque queria ser o menino que ele tanto quis e meninos não devem se incomodar com essas bobagens.

Os gritos lá embaixo são emendados em outros gritos, mas ela gosta é de silêncio.

Confiante e com a pistola na mão direita, desce as escadas sem titubear e sem que as pernas estejam bambas.

A cabeça não está pêndula.

O olhar não se volta para baixo.

Anne sorri com o canto da boca, que deixa cair a última gota de piche.


Alinhavos v. 4, n° 1 - Fevereiro/2023 (revistaalinhavos.wixsite.com) 

Conto de Daniela Bonafé, selecionado por unanimidade por três pareceristas do Projeto Mão e Obra, extensão da UFPA, publicado na revista Alinhavos em fev/2024.