1979

Apagaram glicínia do meu dicionário.

Como se já não bastasse o lilás que jazia na página branca, resolveram, de uma só vez, excluir a beleza pouca que restava de sua memória naquela impressão sem luxo. Glicínia merecia tanto… Cachos pendentes de flores roxas exigiam mais do que a definição remota da cor dos lábios de uma mulher morta.

Também sumiu Rosalinda. Estava de saia até os joelhos, mochila leve nas costas, aquela camiseta vermelha surrada. Queria tê-la abraçado antes, mas não houve tempo. Saiu com os panfletos debaixo do braço e desceu a rua como quem não volta mais. 

Disseram que tomou uns tantos tapas, então eu penso em suas feições de garota e não acredito que te deixaram roxa, Rosalinda, da cor destas flores que não restaram nem nos vocábulos. 

Onde colocaram glicínia? Extirparam a língua e o meu coração? Ah, meu Deus! Persegui glicínia no léxico como te procurei por anos entre desaparecidos, nas listas e nos cantos de tudo quanto era lugar, com a mesma determinação. 

Queria saber onde dorme, Rosalinda, para te levar um buquê de flores rosas como o teu nome ou tuas bochechas vívidas. Ajoelhar na terra que cobre teu corpo para te pedir perdão por não ter ido contigo naquela última manifestação. Eu poderia ter te puxado para um beco, corrido por tuas pernas e pelas minhas. 

Apagam palavras como apagam as luzes, sem pudor ou compostura, mas não apagam as pessoas, porque as pessoas deixam saudade no coração de quem fica. E quando lembramos delas, Rosalinda, elas existem.

Encontrei glicínia estes dias nas velhas folhas de um vocabulário ilustrado de 1979 e meu coração apaziguou-se momentaneamente: sim, havia um lugar reservado e especial para ela, para seu cheiro e para a honra da qual era dona. 

1979 foi o ano em que combinamos que o para sempre era nosso. 

Ainda que minha revolta esteja entalada no peito desde aquela época e que eu veja claramente como essa gente é traiçoeira, ainda que eu sinta a dor cruel de estarem nos apagando, aos poucos e silenciosamente, que bom que estavas lá, glicínia. Que bom foi ler teu nome e recordar-me de sua imagem através de suas letras.

Ainda escrevo, Rosalinda, o teu nome em meus cadernos, com o R mais bonito que sei fazer, para não esquecer do teu rosto e do teu beijo quente, nem das noites que dormimos naquele porão sujo iluminado só pelo teu sorriso. Sinto saudade.

E anoto poemas para nunca te dar.

Texto disponível em: Espaço EscreViventes. Uma parceria ‘cassandra’ e coletivo… | by cassandra | revistacassandra