Escancaradamente Feliz

Cafezinho de coador, uma dúzia de moedas, carinho de mãe, um dia na praia, mordidas num bombocado, a vida do teu filho, calcinha combinando com sutiã, um gole de vodka, histórias de assombração, ir à festa sem ser convidado, gol do seu time aos 45, lençol de algodão egípcio, pipa no céu, muito dinheiro no banco, livro novo e quase esgotado, um par de sapatos novinho, fotografia da família reunida, carro do ano, casamento feliz, um emprego bem remunerado, orgasmos múltiplos, banho morno no fim do dia, Pai Nosso na cama, filme B no cinema, seu cachorro abanando o rabo, bandeirinhas de festa junina, músicas de Beethoven, passeio de bicicleta, álbum de figurinhas completo, o Papa, uma cantada na rua, colesterol baixo, barzinho com os amigos, massagem nos pés logo cedo, docinhos de festa, gostar do próprio corpo, cachoeira nas costas, biscoitos amanteigados, cheiro de roupa limpa, sombra de árvore, vinho branco na taça correta, bolsa sem buraco negro, blusa quente em dia gelado, uma oração para Oxalá, orquídea em flor, garoa fina na madrugada paulista, a palavra certa para a poesia, o telefonema tão esperado, a Xuxa, o sertão, unha desencravada, um Degas aquarelado, a gostosa influencer, carta de gente bem distante, escolher o nome do bebê que vem, viajar de mochila e chinelo, lanche quente prensado, elogio do chefe, amassos no elevador, brincar com os sobrinhos, sair transformada do cabeleireiro, as ruas sem trânsito no feriado, promoção leve 3 pague 2, encontro romântico, passarinhos cantando de manhã, sumir de caso pensado. Então, o que te faz feliz?


O que me faz feliz é um beijo. Um beijo bem dado, um beijo roubado, um beijo quente, molhado, um beijo cheio de outros beijos, que mordisca e lambe e suga e arde e treme de tanto que beija. O beijo que não espera o ar voltar, que não espera a compostura, que não espera. O beijo que pede mão, que pede pele, que pede tudo e ainda mais. O beijo insubmisso que vem no suor, de cara lavada, de alma entregue, aqui e agora, sem antes e nem depois. E sempre foi assim. Mais do que tudo no amor, na paixão e no tesão, o beijo sempre me causou esse turbilhão, esse desejo de querer sem acabar nunca. Os tempos que passei sem beijo - solteira, acompanhada ou casada -  foram de morte por dentro, como se minha boca estivesse desesperadamente só, muda de vida. Nos tempos sem beijo minha boca murmurou pela casa reclamações cotidianas e apertou-se contra o vidro do box durante o banho, para deixar aquela marca nostálgica dos lábios sedentos no vapor. O beijo que não veio me carregou até para o buraco - aquele escuro da indiferença. Então nesses dias foi curioso ouvir de uma garota, durante uma de minhas aulas, que não importa a quem beijamos quando se começa a beijar aos doze anos; o que importa é o beijo em si, porque precisa exercitar para aprender a beijar e quanto mais, melhor. Eu queria dizer para ela que não era bem assim, que às vezes o beijo vem cheio de apego e quando percebemos, ele pode doer no fundo da gente, pode ser um beijo de despedida, aquele último que amarga na boca por anos a fio. Não tive coragem. Eu estava contente de vê-la animada e otimista em suas primeiras peripécias amorosas e, no fundo, fiquei torcendo para que beijasse bastante e que se sentisse como eu me sinto quando beijo esse beijo bom e infinito: escancaradamente feliz. 

Texto disponível em: REVISTA CONTOS DE SAMSARA 4ª ED. BEIJO