17 Jul
17Jul

Tempo de Preparo: incerto

Rendimento e Modo de Servir: há quem diga que serve uma porção; alguns dividem-no em fatias fartas e milimetricamente cortadas na régua; outros preferem em pedaços desiguais e disformes; alguns servem com a elegância da métrica; para mim não importa o tamanho: eu distribuo a quem tem fome.

Ingredientes:

- língua

- um viver fresco, inteiro e intenso

- temperos

Modo de Fazer:

Entenda que a receita de nada serve e então ela lhe será útil. Não compre formas, costumam ser desnecessárias.

Pegue a língua de qualquer variedade, a que lhe serve melhor. Pode ser tenra, suculenta, macia, aveludada, de qualidade dura e afiada, há diversas no mercado. Para dar um bom caldo, é preciso que use a língua em todas as suas possibilidades: amasse, corte, esgarce, triture, moa, lave bem, esprema, morda um pouco, use a criatividade para deixar esse caldo de língua perfumar todo o ambiente. O cheiro precisa tomar suas narinas, o gosto precisa grudar na sua boca, a textura precisa afundar na sua pele, o viço precisa encantar os seus olhos, o som deve zunir nos seus ouvidos até que o desejo de língua tome conta do seu sexo.

Em seguida, pegue o viver. O viver pode ser luminoso, colorido, ter ranhuras, pode ser denso, o importante é que o aspecto estético agrade primeiro a você e que, acima de tudo, seja um viver genuíno. Não adianta tentar procurar o viver na feira, nas lojas, nas vendas de bairro ou nos hipermercados. Não existe viver à venda. O viver deve ser seu ou ao menos, a sua impressão do viver do outro, que você pode tomar emprestado.

Junte a língua com o viver e misture bem. Quanto mais misturar, melhor vai ficar, por isso não se incomode com o tempo que essa etapa vai durar. Quando sentir que a massa está brilhante, é hora de temperar. O tempero é sempre pessoal. Pode-se usar pitadas de dor, uma ou duas lágrimas (há quem goste de mais), nacos de raiva, você pode acrescentar pedacinhos de terror ou horror, folhas de verdades cruas, salpicar com risos, há uma infinidade de especiarias desde os tempos antigos que você pode usar com ou sem moderação. Ainda há quem prefira grandes brotos de mentiras disfarçadas, uma ou duas ardências e picâncias... 

Depois da massa bem temperada, amasse entre os dedos durante algumas horas. Eu prefiro fazer essa parte à noite porque cresce mais. Fico com a massa nas mãos brincando, suando, trabalhando sua forma até cansar, assim, pela manhã, já posso cortar as sobras que vazam. Também há a possibilidade de usar máquinas de processar, que podem acelerar o crescimento. Eu ainda sou das antigas e não descarto o método tradicional que se banha na lua.

Em seguida, vem o cozimento, que também dá um bom trabalho e é lento. Nessa etapa é importante que se estude sobre palavras, maneiras de compor, jeitos de servir e tantas outras coisas que só a leitura pode trazer. Você pode usar outros autores e poemas para ajudar no cozimento, contanto que seja em fogo  brando. Não adianta superaquecer porque queima, também não pode deixar o fogo apagar senão desanda. O fogo deve estar sempre aceso, alimente-o sem cessar. Dessa forma, sua massa será aproveitada da melhor maneira possível, economizando energia.

Quando o poema estiver bem cozido, pode-se acrescentar uma calda adocicada ou agridoce, para lamber os beiços e se fartar. Quem sabe fazer muito bem a calda são as avós, você pode procurar uma que te explique. Eu ainda estou aprendendo a fazê-la, então não me atrevo a colocar a receita aqui... Você também pode decorar o poema, deixá-lo floreado, com palavras diferentes, símbolos e pontuações curiosas. Eu decoro com economia, para mim o menos é mais.

Por último, mas não menos importante, é verificar quando está pronto. Isso porque o tempo é incerto e não há relógio ou outro tipo de contador que se ajuste á medida exata de que o poema precisa, visto que cada receita é única. Você pode tentar usar o sentir, o achismo, a beta, a encheção de saco de você mesma fazendo essa receita... Enfim, quando estiver pronto, deixe-o ser devorado pelas bocas, corpos inteiros, corações, livremente, até que ele suma e fique na memória da beleza.


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