Era o dia mais esperado do ano. Anaya pulou da cama sem nem a mãe precisar chamar. Vestiu logo sua roupa e num instante estava na cozinha, devorando um pão com manteiga, feito na frigideira.
- Filha, nada de tirar a máscara hein? E nem pense em abraçar ninguém.
A menina estava tão ansiosa que nem prestou atenção no que a mãe disse. A mãe pegou o pente garfo e começou a arrumar o cabelo de Anaya.
- Não sei não, acho que vamos ter que cortar esse cabelo, filha. Está dando muito trabalho, e agora ainda mais, que vamos lavar todos os dias depois da escola!
- Mas mãe, e se você fizer as trancinhas?
- Vamos ter que lavar do mesmo jeito e elas não vão durar muito!
Os olhos de Anaya ficaram tristes.A mãe prendeu uma presilha de flor de lótus feita de fuxico nos cabelos de Anaya e juntas seguiram pelas ruas.
O coração de Anaya se acelerou quando viu o escadão da escola. Ficou imaginando os gritinhos de felicidade das suas amigas na hora da entrada.
Sete horas em ponto quando Anaya chegou, juntinho com o barulho do sinal. Ganhou um beijo estalado da mãe e uma nova rotina se apresentou.
Primeiro veio a inspetora Nice, que mais parecia uma astronauta, vestida com aquela roupa de proteção típica dos últimos tempos. O termômetro nas mãos da inspetora apitou, logo que chegou perto da testa de Anaya.
- Trinta e seis!
Anaya sorriu, mas não ganhou o velho e bom abraço dela. No pátio não tinha ninguém correndo. Todos aguardavam em filas, marcadas com fita crepe no chão. Parece que o primeiro ano era um pouco sem graça diante da velha e boa rotina do jardim de infância.Onde estava Jamile? E a Maria? Procurou com o olhar e encontrou cada uma numa ponta da fila. Antes que Anaya pudesse correr até suas amigas, seu Zé, o vigia, foi logo avisando que ela deveria ficar ali, bem paradinha.
Os olhos de Anaya ficaram tristes de novo.
Então viu a professora Luara chegando. De acordo com a mãe, ela seria sua professora. Anaya achou a mulher mais linda do mundo, igualzinha a sua mãe.Todas as crianças se levantaram e correram para abraçar a professora que, desesperada, apitou. Desde quando uma professora tinha apito?
- Crianças, mantenham a distância e vamos em fila para a sala.
Anaya respirou fundo. A escola dos “alunos” grandes era muito diferente. Onde estava a mesinha de pebolim? E os triciclos? Por que aquelas faixas listradas fechando o parquinho? Como se não bastasse tudo isso, professora Luara não esperou na porta para beijinhos matinais.
A sala de aula também era esquisita, com uma mesa bem longe da outra. Mesas individuais! Anaya, assim como todas as outras crianças, sentou-se sozinha. E naquela manhã, o tempo passou bem devagar. Tudo parecia chato e sem graça. O recreio foi o pior. Nada de correr, brincar ou dividir o lanche. A inspetora Nice disse que a pandemia exigia cuidados. Sendo assim, Anaya lavou tanto as mãos, que achou que ia ficar enrugada como uma vovozinha.
Era quase hora de ir embora quando Anaya levantou a mão para uma pergunta.
- Pode falar, querida!
- Professora Luara, quando vamos brincar e nos abraçar?
A professora ficou embaraçada, mas viu que os grandes olhos pretos de Anaya estavam sem brilho, de tanta tristeza.
- Agora, Anaya, também não aguento mais isso, essa escola está muito chata!
As crianças ficaram espantadas.
Então a professora estendeu um barbante que ia de um preguinho da lousa até o ventilador, do outro lado da sala. Pendurou no varal improvisado um grande saco plástico transparente e o prendeu com pregadores.
- Venha Anaya, você será a primeira!
A professora Luara ficou de um lado do plástico e Anaya do outro lado. As duas sorriram felizes enquanto se abraçaram através dele. Anaya sentiu seu coração preenchido de amor! E assim, a cada abraço, muitas risadas das crianças. Ao fim da aula, todos estavam bem mais contentes.Quando o sinal tocou para a saída, Anaya ficou mais um pouquinho. Ela queria conversar um minutinho com a professora Luara.
- O que foi, Anaya? Está muito triste, não é?
- Aham.
- Vai passar, Anaya, logo estaremos nos divertindo ainda mais. O primeiro ano não é tão chato assim.
- Sabe o que é? Eu não quero cortar o cabelo, mas não dá para lavar todos os dias! E a minha mãe disse que mesmo se fizer as trancinhas, vai dar um trabalhão! Essa pandemia está estragando tudo!
Os olhos de Anaya quase vazaram de desolação e a professora ficou pensativa.
- Não se preocupe, Anaya. Tenho uma ideia. Diga para sua mãe não cortar seu cabelo, porque amanhã vou te trazer uma surpresa.
Anaya foi para casa a pé, tentando descobrir qual surpresa seria. Subiu o escadão e andou por todas as ruas bem depressa, porque queria que o dia seguinte chegasse rápido.
Fez a sua primeira lição de casa com a cabeça na lua e quase se esqueceu do almoço prontinho que a mãe tinha deixado sobre o fogão. Até a mãe chegar, quase noitinha depois do trabalho, Anaya só conseguia pensar no dia seguinte e na tal surpresa. - Mãe, a professora Luara pediu para você não cortar meu cabelo.
- E por quê?
- Não sei, ela disse que amanhã vai me levar uma surpresa.
- Está bem. Vamos esperar para ver o que é. Agora é hora de dormir, já está tarde, filha.
Depois de uma sopa quentinha, as duas se deitaram. Anaya dormiu e mais uma vez teve pesadelos. Apesar disso, acordou muito animada e teve certeza de que esse sim era o dia mais esperado do ano!
- Filha, coma todo o lanche da escola, está bem?
Anaya engoliu o café da manhã e quase se esqueceu de escovar os dentes. Quando chegou à escola, nem ligou para o termômetro ou para a chatice de ficar longe das amigas. O que mais queria era encontrar logo a professora Luara. E lá estava ela, com aquele sorriso que os olhos mostram através da máscara, segurando uma caixa bonita nas mãos, que ela só entregou para Anaya ao final do turno, quando todas as outras crianças já tinham ido embora. Foi difícil para Anaya segurar o coração – que quase saía pela boca – durante aquela manhã de aulas, tanta era a sua expectativa.
- Anaya, isto é para você.
Anaya segurou o embrulho como se fosse um tesouro. A caixa era rosa, com um laço de fita vermelha muito bonito, que ela teve até dó de desmanchar.
- Vamos, abra!
Anaya abriu com cuidado e então seus olhos se encheram de lágrimas, mas desta vez eram de alegria.
Ali, sobre o papel de seda branco no fundo da caixa, repousavam cinco lindos lenços, de tecidos muito leves, cheios de estampas incríveis e coloridas, que pareciam ter saído de um livro de histórias.
- Venha aqui, vou te ensinar a vestir o cabelo. Tem um para cada dia da semana!
Então a professora Luara mostrou a Anaya como é que se fazia os turbantes na cabeça, ensinou alguns nós e maneiras de enrolar os cabelos.
- Pronto, Anaya, agora não precisa mais cortar o cabelo, você já sabe como protegê-lo na escola.
Anaya sorriu de orelha a orelha. A professora Luara sabia exatamente como dar amor, mesmo sem poder abraçar o tempo todo.
Anaya saiu com a caixa de lenços nas mãos, sem desgrudar dela um segundo. Voltou para casa saltitante e ficou esperando a mãe chegar, para mostrar a novidade.
- Mãe, olha isso!A mãe de Anaya ficou mesmo encantada e logo pediu a agenda da menina para anotar um bilhetinho de agradecimento.
- Filha, você está parecendo uma jóia! Como é que eu não pensei nisso antes?
A mãe prestou muita atenção nas explicações que Anaya deu sobre as amarrações no cabelo e até pensou em mudar o próprio visual, só para usar lenços lindos também.
- Puxa, nunca tive um desses, filha!
- Ué, podemos dividir, mãe!
As duas sorriram e naquela noite, Anaya sonhou tanto que até acordou cansada. No sonho, Anaya dava a volta ao mundo, voando em uma asa delta feita com seus lenços coloridos. A asa delta a levava pelo céu, para derramar sobre toda a gente muitas pétalas de flores de lótus, que saíam sem parar de seus cabelos.
Texto disponível em: REVISTA CONTOS DE SAMSARA 2ª ED. LÓTUS